Quando a expulsão de um gato ou outro animal que entra no condomínio pode ter caráter criminal? Uma reflexão legal.

Juracy Braga Soares Junior
Publicado em: seg, 20/10/2025 - 14:49

A presença de animais no ambiente condominial suscita inúmeras questões práticas, éticas e jurídicas. Em especial, quando um animal — por exemplo, um gato — entra em um condomínio e é simplesmente “colocado para fora”, uma reação aparentemente simples pode envolver implicações legais relevantes. Este artigo propõe uma análise para sustentar que, sim, em determinadas circunstâncias, essa conduta pode configurar crime, de acordo com a legislação brasileira — e também levando em conta a legislação estadual no Ceará.

1. A base legal federal: o crime de maus-tratos aos animais
No plano federal, a principal norma que trata de condutas lesivas aos animais é a Lei n.º 9.605/1998 — conhecida como Lei de Crimes Ambientais. Em seu artigo 32, dispõe:

“Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.”

A Lei mais recentemente — Lei n.º 14.064/2020 — aumentou as penas para maus-tratos contra cães e gatos, tornando-se reclusão de 2 a 5 anos em tais casos.

A redação deixa claro que a proteção alcança animais domésticos ou domesticados — o que inclui, tipicamente, gatos e cães. E que bastam atos de “abuso” ou “maus-tratos” para se configurar o tipo penal, independentemente de resultar ou não a morte do animal (apesar de essa hipótese agravar a pena).

2. O que pode significar “maus-tratos” ?
Embora a lei não detalhe todas as hipóteses, a doutrina e a jurisprudência interpretam que maus-tratos incluem condutas como:

• Privar o animal de cuidados básicos (água, alimento, abrigo adequado);
• Submetê-lo a dor ou sofrimento desnecessário, ou tratamento cruel;
• Abandono ou exposição indevida em local insalubre ou que ofereça risco à integridade física ou psíquica do animal;
• Comportamentos que evidenciem o desprezo pelo bem-estar do animal, sendo irrelevante se houve lesão grave ou não; basta a conduta.

Assim, se o simples ato de “expulsar” um animal de ambiente condominial implicar abandono, exposição a riscos ou tratamento cruel, poderá se aproximar dos contornos do art. 32 da Lei 9.605/98.

3. Contextualização local – legislação do Ceará
No contexto do Estado do Ceará, há uma norma complementar relevante: a Lei n.º 17.729/2021 (Política Estadual de Proteção Animal).

Essa lei institui diretrizes para a proteção, defesa e preservação dos animais, domesticados ou não, no âmbito estadual. Essa norma reforça o parâmetro segundo o qual os animais devem ser tratados com dignidade e amparo, não apenas como simples “objetos” ou “incômodos”.

Logo, no Ceará, ainda que não haja norma específica para “animais em condomínios”, o marco de proteção existe e deve ser considerado no ambiente condominial.

4. Aplicação ao cenário do condomínio: como interpretar?
Tomemos o cenário: um gato adentrou um condomínio. O condomínio ou algum morador toma a decisão de “colocar o gato para fora”. Pergunta-se: pode haver crime? A resposta é: sim, pode, dependendo de como a ação for realizada e das circunstâncias. Veja os elementos que devem ser observados:

a) Existência de risco ou justificativa
Se o gato entra e representa risco à saúde, segurança ou integridade de moradores (por exemplo infestação, agressividade, zoonose concreta) – a ação de remoção ou encaminhamento para fora pode ter justificativa legítima. Nessa hipótese, o condomínio deve agir com cautela, registrando a justificativa, garantindo que o animal seja tratado com respeito, e buscando soluções compatíveis com a legislação de proteção.

b) Forma da expulsão / remoção
Se o animal for simplesmente empurrado para fora, sem garantia de que terá condições de vida, acesso a abrigo, alimento, ou se for colocado em local de risco (rua movimentada, sem abrigo, sem água, ou sujeito a maus-tratos por terceiros), tal remoção poderá caracterizar tratamento cruel ou abandono, aproximando-se das hipóteses de maus-tratos tipificadas federalmente.

c) Reconhecimento de “animal comunitário” ou sem tutor identificável
Se o gato não pertence a um morador específico ou é reconhecido como “animal comunitário”, ou “sem tutor identificado”, impõe-se ao condomínio / comunidade que considere alternativas como captura responsável, encaminhamento a tutoria, adoção, abrigo, ou cooperação com órgão competente, em vez de simplesmente “expulsar”.

d) Documentação e provas
Para eventual responsabilização, é necessário que haja indícios ou provas da prática: fotos, filmagens, testemunhas, evidência de que o animal foi removido de modo desleixado, exposição a risco ou sofrimento. A cartilha do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul destaca esse aspecto.

5. Por que a expulsão pode conflitar com o crime ?
• A remoção imprudente ou negligente de um animal pode configurar “abandono” ou “exposição a risco”, o que é entendido como maus-tratos no âmbito da proteção aos animais.
• A legislação federal tipifica a conduta de “maus-tratos” contra animais domésticos (incluindo gatos) como crime.
• A legislação estadual reforça o dever de proteção e bem-estar animal.
• Mesmo que não haja norma específica para condomínio, o fato de o animal ter sido “colocado para fora” sem garantia de bem-estar pode ser interpretado como conduta omissiva ou comissiva lesiva à dignidade do animal.

6. Recomendações para condomínios
Dado o exposto, para minimizar riscos legais e adotar práticas adequadas, sugerem-se os seguintes passos:
• Criar/regulamentar no regimento do condomínio a política de presença de animais, inclusive para animais comunitários ou sem tutor.
• Em caso de animal estranho ou “invasor”, adotar protocolo que inclua: identificação do animal, verificação de tutor, comunicação aos moradores, avaliação de risco, contato com órgão municipal de proteção animal ou ONG local.
• Evitar a expulsão abrupta: providenciar deslocamento responsável com abrigo, alimentação, e se possível encaminhamento a lar temporário ou adoção.
• Documentar as ações e justificativas, em especial se for necessária remoção por risco.
• Promover conscientização dos moradores sobre convivência com animais, proteção e bem-estar.

7. Considerações finais
A aparente simplicidade de “expulsar um gato que entrou no condomínio” esconde implicações jurídicas que não devem ser ignoradas. A legislação brasileira, mais robusta hoje do que em décadas anteriores, reconhece os animais domésticos como sujeitos de proteção, e define condutas de maus-tratos como crime. Em âmbito estadual (como no Ceará) essa proteção é reforçada por políticas de bem-estar animal.

Assim, ao agir em condomínios, é prudente que a administração e os condôminos adotem posturas responsáveis — tratando o animal com dignidade, avaliando a situação com cuidado e respeitando o arcabouço legal vigente. Caso contrário, há efetiva possibilidade de responsabilização criminal por maus-tratos.

Este artigo tem caráter informativo e não substitui consulta jurídica especializada. Para casos concretos recomenda-se assessoramento por advogado ou contato com o órgão estadual de proteção animal.

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Juracy Soares

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